No cemitério de Montmartre, onde, com simplicidade,
aos 2 de Abril se realizou o sepultamento dos despojos do
mestre, comparecia uma multidão de mais de mil pessoas.
Discursaram diversos oradores, discípulos dedicados
de Kardec, e por último o Sr. E. Muller, que logo no
princípio do seu elogio fúnebre ao querido extinto
assim se expressou: “Falo em nome de sua viúva,
da qual lhe foi companheira fiel e ditosa durante trinta e
sete anos de felicidade sem nuvens nem desgostos, daquela
que lhe compartiu as crenças e os trabalhos, as vicissitudes
e as alegrias, e que se orgulhava da pureza dos costumes,
da honestidade absoluta e do desinteresse sublime do esposo;
hoje, sozinha, é ela quem nos dá a todos o exemplo
de coragem, de tolerância, do perdão das injúrias
e do dever escrupulosamente cumprido.”
Madame Allan Kardec recebeu da França e do estrangeiro,
numerosas e efusivas manifestações de simpatia
e encorajamento, o que lhe trouxe novas forças para
o prosseguimento da obra do seu amado esposo.
Desejando os espiritistas franceses perpetuar num monumento
o seu testemunho de profundo reconhecimento à memória
do inesquecível mestre, consultaram nesse sentido a
viúva, que, sensibilizada com aqueles desejos humanos
mas sinceros, anuiu, encarregando desde logo uma comissão
para tomar as necessárias providências. Obedecendo
a um desenho do Sr. Sebille, foi então levantado no
cemitério do Père-Lachaise um dólmen,
constituído de três pedras de granito puro, em
posição vertical, sobre as quais se colocou
uma quarta pedra, tabular, ligeiramente inclinada, e pesando
seis toneladas. No interior deste dólmen, sobre uma
coluna também de pedra, fixou-se um busto, em bronze,
de Kardec.
Esta nova morada dos despojos mortais do Codificador foi inaugurada
em 31 de Março de 1870 , e nessa ocasião o Sr.
Levent, vice-presidente da “Sociedade Parisiense de
Estudos Espíritas”, discursou, a pedido de Madame
Allan Kardec, em nome dela e dos amigos.
Cerca de dois meses após o decesso do excelso missionário
de Lyon, sua esposa, no desejo louvável de contribuir
para a realização dos plano futuros que ele
tivera em mente, e de cujas obras, revista e Livraria passou
a ser a única proprietária legal, houve por
bem, no interesse da Doutrina, conceder todos os anos certa
verba para uma “Caixa Geral do Espiritismo”, cujos
fundos seriam aplicados na aquisição de propriedades,
a fim de que pudessem ser remediadas quaisquer eventualidades
futuras.
Outras sábias decisões foram por ela tomadas
no sentido de salvaguardar a propaganda do Espiritismo, sendo,
por isso, bastante apreciado pelos espíritas de todo
o Mundo o seu nobre desinteresse e devotamento.
Apesar de sua avançada idade, Madame Allan Kardec demonstrava
um espírito de trabalho fora do comum, fazendo questão
de tudo gerir pessoalmente, cuidando de assuntos diversos,
que demandariam várias cabeças. Além
de comparecer à reuniões, para as quais era
convidada, todos os anos presidia à belíssima
sessão em que se comemorava o Dia dos Mortos, e na
qual, após vários oradores mostrarem o que em
verdade significa a morte à luz do Espiritismo, expressivas
comunicações de Espíritos Superiores
eram recebidas por diversos médiuns.
Se Madame Allan Kardec – conforme se lê em Revue
Spirite de 1869 – se entregasse ao seu interesse pessoal,
deixando que as coisas andassem por si mesmas e sem preocupação
de sua parte, ela facilmente poderia assegurar tranqüilidade
e repouso à sua velhice. Mas, colocando-se num ponto
de vista superior, e guiada, além disso, pela certeza
de que Allan Kardec com ela contava para prosseguir, no rumo
já traçado, a obra moralizadora que lhe foi
objeto de toda a solicitude durante os últimos anos
de vida, Madame Allan Kardec não hesitou um só
instante. Profundamente convencida da verdade dos ensinos
espíritas, ela buscou garantir a vitalidade do Espiritismo
no futuro, e, conforme ela mesma o disse, melhor não
saberia aplicar o tempo que ainda lhe restava na Terra, antes
de reunir-se ao esposo.
Esforçando-se por concretizar os planos expostos por
Allan Kardec em “Revue Spirite” de 1868, ela conseguiu,
depois de cuidadosos estudos feitos conjuntamente com alguns
dos velhos discípulos de Kardec, fundar a “Sociedade
Anônima do Espiritismo”.
Destinada à vulgarização do Espiritismo
por todos os meios permitidos pelas leis, a referida sociedade
tinha, contudo, como fito principal, a continuação
da “Revue Spirite”, a publicação
das obras de Kardec e bem assim de todos os livros que tratassem
do Espiritismo.
Graças, pois, à visão, ao empenho, ao
devotamento sem limites de Madame Allan Kardec, o Espiritismo
cresceu a passos de gigante, não só na França,
que também no Mundo todo.
Estafantes eram os afazeres dessa admirável mulher,
cuja idade já lhe exigia repouso físico e sossego
de espírito. Bem cedo, entretanto, os Céus a
socorreram. O Sr. P. G. Leymarie, um dos mais fervorosos discípulos
de Kardec desde 1858, médium, homem honesto e trabalhador
incansável, assumiu em 1871 a gerência da Revue
Spirite e da Livraria, e logo depois, com a renúncia
dos companheiros de administração da sociedade
anônima, sozinho tomou sob os ombros os pesados encargos
da direção. Daí por diante, foi ele o
braço direito de Madame Allan Kardec, sempre acatando
com respeito as instruções emanadas da venerável
anciã, permitindo que ela terminasse seus dias em paz
e confiante no progresso contínuo do Espiritismo.
Parecendo muito comercial, aos olhos de alguns espíritas
puritanos, o título dado à Sociedade, Madame
Allan Kardec, que também nunca simpatizara com esse
título, mas que o aceitara por causa de certas conveniências,
resolveu, na assembléia geral de 18 de Outubro de 1873,
dar-lhe novo nome: “Sociedade para a Continuação
das Obras Espíritas de Allan Kardec”, satisfazendo
com isso a gregos e troianos.
Muito ainda fez essa extraordinária mulher a prol do
Espiritismo e de todos quantos lhe pediam um conselho ou uma
palavra de consolo, até que em 21 de Janeiro de 1883,
às 5 horas da madrugada, docemente, com rara lucidez
der espírito, com aquele mesmo gracioso e meigo sorriso
que sempre lhe brincava nos lábios, desatou-se dos
últimos laços que a prendiam à matéria.
A querida velhinha tinha então 87 anos, e nessa idade,
contam os que a conheceram, ainda lia sem precisar de óculos
e escrevia ao mesmo tempo corretamente e com letra firme.
Aplicando-lhe as expressões de célebre escritor,
pode-se dizer, sem nenhum excesso, que “sua existência
inteira foi um poema cheio de coragem, perseverança,
caridade e sabedoria”.
Compreensível, pois, era a consternação
que atingiu a família espírita em todos os quadrantes
do globo. De acordo com o seus próprios desejos, o
enterro de Madame Allan Kardec foi simples e espiriticamente
realizado, saindo o féretro de sua residência,
na Avenida e Vila Ségur n. 39, para o Père-Lachaise,
a 12 quilômetros de distância.
Grande multidão, composta de pessoas humildes e de
destaque, compareceu em 23 de Janeiro às exéquias
junto ao dólmen de Kardec, onde os despojos da velhinha
foram inumados e onde todos os anos, até à sua
desencarnação, ela compareceu às solenidades
de 31 de março.
Na coluna que suporta o busto do Codificador foram depois
gravados, à esquerda, esses dizeres em letras maiúsculas:
AMÈLIE GABRIELLE BOUDET – VEUVE ALLAN KARDEC
– 21 NOVEMBRE 1795 – 21 JANVIER 1883.
No ato do sepultamento falaram os Srs. P.G. Leymarie, em nome
de todos os espíritas e da “Sociedade para a
Continuação das Obras Espíritas de Allan
Kardec”, Charles Fauvety, ilustre escritor e presidente
da “Sociedade Científica de Estudos Psicológicos”,
e bem assim representantes de outras Instituições
e amigos, como Gabriel Delanne, Cot, Carrier, J. Camille Chaigneau,
poeta e escritor, Lecoq, Georges Cochet, Louis Vignon, que
dedicou delicados versos à querida extinta, o Dr. Josset
e a distinta escritora, a Sra. Sofia Rosen-Dufaure, todos
fazendo sobressair os reais méritos daquela digna sucessora
de Kardec. Por fim, com uma prece feita pelo Sr. Warroquier,
os presentes se dispersaram em silêncio.
A nota mais tocante daquelas homenagens póstumas foi
dada pelo Sr. Lecoq. Leu ele, para alegria de todos, bela
comunicação mediúnica de Antonio de Pádua,
recebida em 22 de Janeiro, na qual esse iluminado Espírito
descrevia a brilhante recepção com que elevados
Amigos do Espaço, juntamente com Allan Kardec, acolheram
aquele ser bem aventurado.
No improviso do Sr. P.G. Leymarie, este relembrou, em traços
rápidos, algo da vida operosa da veneranda extinta,
da sua nobreza d'alma, afirmando, entre outras coisas, que
a publicação tanto de O Livro dos Espíritos,
quanto da Revue Spirite, se deveu em grande parte à
firmeza de ânimo, à insistência, à
perseverança de Madame Allan Kardec.
Não deixando herdeiros diretos, pois que não
teve filhos, por testamento fez ela sua legatária universal
a “Sociedade para Continuação das Obras
Espíritas de Allan Kardec”. Embora uma parenta
sua, já bem idosa, e os filhos desta intentassem anular
essas disposições testamentárias, alegando
que ela não estava em perfeito juízo, nada,
entretanto, conseguiram, pois as provas em contrário
foram esmagadoras.
Em 26 de Janeiro de 1883, o conceituado médium parisiense
Sr. E. Cordurié recebia espontaneamente uma mensagem
assinada pelo Espírito de Madame Allan Kardec, logo
seguida de outra, da autoria de seu esposo. Singelas na forma,
belas nos conceitos, tinham ainda um sopro de imortalidade
e comprovavam que a vida continua...
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